Ao meu Valentão, eis minha carta.

Querido amigo, desculpe-me por te chamar assim, porque não sei como chamar alguém que quero hoje tão bem senão dizendo “amigo”. Somos ambos da mesma cidade de interior, aquela pequenininha que todos se conhecem tão bem, estudamos nos mesmos

colégios e somos de famílias de mesma classe social. Basicamente, sempre tivemos as mesmas oportunidades, ainda que a cada momento que o acaso te proporcionou, tu me fazias acreditar que eu valia menos que ti.  Na nossa infância eram nos recreios do colégio, onde tu me perseguias e me fazias de chacota na frente dos outros alunos.

Os oito tipos de bullyingComecei a passar dentro da capela, em silencio, meus recreios, e quando a capela estava clausurada, dentro da sala de aula, repassando os deveres, e ainda quando a professora me impedia de ficar dentro da sala, me escondia atrás da monitora do recreio, na direção ou na recepção do colégio. Lugares onde alunos não deveriam estar, porque sabia que lá tu não estarias. Quando finalmente tu terminaste o ensino fundamental, acreditei que o bullying também tinha terminado. Triste engano. Na minha adolescência tu continuou me provando e me mostrando o quão feio eu era e o quanto eu não pertencia àquele lugar, mas não mais atrás dos muros do colégio, senão que nas festas dos clubes da cidade, na rua quando me encontrava, não importando se eu estava sozinho, com amigos ou com minha família. Tu querias que eu sempre te olhasse com medo. Querido amigo, tu venceste. Ainda quando tomei iniciativa de te enfrentar, eu perdi. Sem remédio, e sentindo não pertencer ao lugar onde nasci, na primeira oportunidade que apareceu, me despedi. Mudar-me à capital era a única oportunidade que eu tinha. Talvez lá, onde ninguém me conhecia, e ninguém sabia o quão pouco você me fez acreditar que eu valia, eu conseguisse pertencer a algum lugar. Novamente, fracassei. Encontrei pessoas piores que ti, e alguns dos seus amigos, que me desvalorizaram e me rebaixaram ainda mais, mas eu já estava acostumado. Errado, mim, infeliz, mim, fracassado, mim. Porém, lutei por mim, e de novo, frente a uma oportunidade, mudei-me. Já acreditando na impossibilidade de pertencer a algum lugar, me despedi do nosso país e fui atrás novamente de algo que tu me tiraste e que ninguém poderia me dar. Conheci pessoas dos mais diversos lugares do mundo, com vivências, mentalidades e ideias diferentes. Alguns com formas de vida transcendente. Amei e fui amado. Aprendi uma cultura e uma língua nova, e tudo o que se propuseram a me ensinar. Vivi situações maravilhosas e também terríveis e de total desespero. Conquistei um título universitário em um país estrangeiro. Me transformo em um profissional de excelente qualidade. Me descobri – me descobri um amante da ciência, da filosofia, da ética, da história, das pessoas e alguém que busca transformação através do autoconhecimento e do amor, que aprendi, graças a ti, a primeiro a dar aos outros e depois a mim mesmo, porque os outros mereciam amor, eu não merecia nada. Levei anos para criar autoconfiança e amor próprio, por tudo que me fizeste passar. Amigo, tu me destruíste desde dentro. Talvez com o que não contavas era que de destroços também se constroem castelos, e eu construí o meu. Longe de ti.

576da71a46fe9_pesten_2602Os resquícios da destruição seguem existindo nos meus jardins, por anos busquei algo que tu me tiraste, mas, meu amigo, ao longo destes anos aprendi a deixar de buscar e a viver a vida como se fosse uma dança, em que o mais importante é desfrutar a música. O que eu conquistei eu devo a mim mesmo, ao meu esforço e ao apoio dos meus pais, mas, sem sua maldade e iniquidade, meu desejo de mudança e de transformação talvez não existiriam, vivendo dentro da minha bolha de conforto, eu seria alguém como você é hoje, infeliz. Vivi uma longa jornada para chegar aqui hoje, aprendi muito e tenho muitas histórias, mas contigo eu não quero compartilhar isto, porque é meu. Nossa “amizade” ficou no passado. Espero que algum dia você possa crescer como eu pude e ser feliz como eu sou, porque sei dos mal tratos que a vida te causou nos últimos anos. Mas não se engane, não quero tua amizade novamente, por isto, não me envie solicitações de amizade pelas redes sociais da sua avó. Um abraço carinhoso.

Imagens (pareceres) de uma vida cotidiana

Os que somos agraciados com o dom da visão permitimos que muitas lindas imagens passem despercebidas por nós. Geralmente preocupados com os afazeres a completar ou com problemas relacionados à nossa complicada existência, deixamos passar detalhes que talvez mudassem para melhor nosso dia.  O que eu relato aqui, aconteceu comigo, numa esquina da vida, num lugar conhecido por Deus.

Caminhava a passos lentos pela vereda de enfrente a uma loja de cafés. Pensava em Deus –sabe-o-que. Parei na esquina, esperando a mudança do sinal para que pudesse atravessar. Olhei o céu, fazia um lindo dia, céu azul sem nuvens, um calor agradável e sem muito vento.  Olhei para a rua e por meros movimentos da cabeça, para acompanhar o fluxo dos carros, percebo uma imagem peculiar que a principio me causou pânico: uma senhora de rua, um pouco baixa, suja, usando roupas rasgadas e com um bolsão nas costas que segurava com a mão direita, estava de braço dado com um rapaz cego, ela olhava fixamente a ele, com um olhar tão terno quanto uma mãe olharia a seu filho. Antes de associar toda a imagem pensei em um assalto, o que me havia causado o pânico, somente no segundo instante percebi a verdadeira situação. A partir desse momento busquei apreciar a delicadeza daquele olhar materno em direção a um filho desconhecido.  Por pura compaixão sem esperança de receber nada em troca, ela, que por suas condições necessitava de ajuda, era quem ajudava.

O curioso é que não ajudou apenas ao rapaz cego, ajudou a mim também. Eu, que vinha preocupado com Deus-sabe-o-que, esqueci meus problemas para apreciar o gentil gesto daquela senhora que tinha as estrelas como o teto do seu quarto.

Os bons exemplos nos rodeiam. Cabe a nós querer enxerga-los e mudar nossas atitudes.

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